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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Corpo-transparência

"Recordo-me especificamente de um ensaio em uma das primeiras semanas deste processo de montagem que durou cerca de dois anos. Eu estava recémchegada ao grupo e Giselle me pediu para que executasse um solo de cinco minutos e… sem música! A sensação que tenho, e claro, falo aqui através daquilo que se 59 chama de memória, é a de que este solo improvisado exigiu um esforço tremendo no sentido de executar de forma mais precisa e clara vários dos preceitos tão firmemente estudados por mim durante tanto tempo. Depois de anos a fio estudando a precisão dos movimentos sob um enfoque virtuoso, este solo de cinco minutos foi rico em linhas e retas e níveis e dinâmicas e uso do espaço cunninghamianos e todos aqueles elementos do movimento virtuoso que permitiam uma fisicalidade precisa e de certa forma, também estéril. No meio do solo, tão fundamentado em pernas altas e piruetas ágeis, tropecei nos próprios pés e caí no chão. Claro, fiz da queda um impulso a mais e já retornei ao meu intuito de, em cinco minutos, fazer o melhor e mais bem apurado conjunto de passos já executados. Ao final deste tempo, quando o solo chegou ao fim e eu me encontrava ofegante e levemente orgulhosa de meu bom desempenho técnico, sentei no chão com o grupo que me observava para os devidos comentários e feedbacks. Qual não foi a minha surpresa, ao perceber os colegas imbuídos em um silêncio longo, com olhares evasivos, em desvio, em reticência. Interrompendo o silêncio, Giselle inicia a sua fala quase que descrevendo a minha atuação no solo, fazendo elogios bem pouco entusiasmados às minhas habilidades técnicas, mas se atendo precisamente a fazer perguntas sobre a minha expressividade, sobre as minhas sensações, as minhas ideias naquele corpo quaseintangível de peculiaridades, sobre as subjetividades e pessoalidades daquele corpo que além de executar passos, pensa e come e anda e sente e se percebe no mundo, e que a dança caminha também por aí, nestes entremeios, nestes percalços, nas entrelinhas, se estabelecendo também nas subjetividades. “Cadê você nesse corpo, Lina?”, ela perguntou. E nisso, algumas pessoas do grupo começaram a falar que foi bem ali, bem no momento da queda, quando o corpo perdeu o controle e foi ao chão - ali no descontrole, no desgoverno, na inabilidade latente - foi que o corpo esboçou um mínimo de afrouxamento, de sutileza, de possibilidade de se alterar de um estado de opacidade para a poética de um corpo-transparência, numa circunstância onde se percebe “o caráter subliminar da tessitura corporal” (LOUPPE, 2012, p. 70) ou estado de corpo que enalteça “as condições orgânicas dessa emergência poética” (LOUPPE, 2012, p. 69).    Este deslocamento do corpo-opaco para o estado de corpo-transparência é um significante que se realiza aberto à poética dos sentidos."

Trecho da dissertação de mestrado de Lina Frazão intitulada "O CORPO EM ESTADO DE TRANSPARÊNCIA: ABORDAGENS DIDÁTICAS EM DANÇA", pág. 59.

Link: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/15771/1/2014_LinaFrazaoCastro.pdf

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