"Recordo-me especificamente de um ensaio em uma das primeiras semanas
deste processo de montagem que durou cerca de dois anos. Eu estava recémchegada
ao grupo e Giselle me pediu para que executasse um solo de cinco minutos
e… sem música! A sensação que tenho, e claro, falo aqui através daquilo que se
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chama de memória, é a de que este solo improvisado exigiu um esforço tremendo no
sentido de executar de forma mais precisa e clara vários dos preceitos tão
firmemente estudados por mim durante tanto tempo. Depois de anos a fio estudando
a precisão dos movimentos sob um enfoque virtuoso, este solo de cinco minutos foi
rico em linhas e retas e níveis e dinâmicas e uso do espaço cunninghamianos e
todos aqueles elementos do movimento virtuoso que permitiam uma fisicalidade
precisa e de certa forma, também estéril. No meio do solo, tão fundamentado em
pernas altas e piruetas ágeis, tropecei nos próprios pés e caí no chão. Claro, fiz da
queda um impulso a mais e já retornei ao meu intuito de, em cinco minutos, fazer o
melhor e mais bem apurado conjunto de passos já executados. Ao final deste tempo,
quando o solo chegou ao fim e eu me encontrava ofegante e levemente orgulhosa
de meu bom desempenho técnico, sentei no chão com o grupo que me observava
para os devidos comentários e feedbacks. Qual não foi a minha surpresa, ao
perceber os colegas imbuídos em um silêncio longo, com olhares evasivos, em
desvio, em reticência.
Interrompendo o silêncio, Giselle inicia a sua fala quase que descrevendo a
minha atuação no solo, fazendo elogios bem pouco entusiasmados às minhas
habilidades técnicas, mas se atendo precisamente a fazer perguntas sobre a minha
expressividade, sobre as minhas sensações, as minhas ideias naquele corpo quaseintangível
de peculiaridades, sobre as subjetividades e pessoalidades daquele corpo
que além de executar passos, pensa e come e anda e sente e se percebe no
mundo, e que a dança caminha também por aí, nestes entremeios, nestes percalços,
nas entrelinhas, se estabelecendo também nas subjetividades. “Cadê você nesse
corpo, Lina?”, ela perguntou. E nisso, algumas pessoas do grupo começaram a falar
que foi bem ali, bem no momento da queda, quando o corpo perdeu o controle e foi
ao chão - ali no descontrole, no desgoverno, na inabilidade latente - foi que o corpo
esboçou um mínimo de afrouxamento, de sutileza, de possibilidade de se alterar de
um estado de opacidade para a poética de um corpo-transparência, numa
circunstância onde se percebe “o caráter subliminar da tessitura corporal” (LOUPPE,
2012, p. 70) ou estado de corpo que enalteça “as condições orgânicas dessa
emergência poética” (LOUPPE, 2012, p. 69). Este deslocamento do corpo-opaco
para o estado de corpo-transparência é um significante que se realiza aberto à
poética dos sentidos."
Trecho da dissertação de mestrado de Lina Frazão intitulada "O CORPO EM ESTADO DE TRANSPARÊNCIA: ABORDAGENS
DIDÁTICAS EM DANÇA", pág. 59.
Link: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/15771/1/2014_LinaFrazaoCastro.pdf
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